CRISTOVÃO TEZZA
Em pouco mais de seis décadas de vida, passei do fogão a lenha da
infância para este computador em que inauguro a coluna, o que faz de mim
um brasileiro típico: um pé firme ainda no século 19, e outro inseguro
no século 21, aparentemente sem ter vivido de fato o trepidante meio
tempo do século 20, que, para quem veio depois das guerras, parecia só
uma passagem do campo para a cidade.
Como as coisas vão acontecendo todas ao mesmo tempo, é difícil enxergar os detalhes do dia a dia.
Em algum momento a literatura tornou-se a medida da vida para mim,
primeiro como leitor, depois como escritor. Como todo mundo, fui
formatado (para usar esta palavra exata e violenta) na adolescência, o
que no meu caso coincidiu com a formatação especial dos anos 1960.
Olhando o mundo pelo umbigo, parece que tudo que temos hoje já estava
ali: os Beatles, a fúria da esquerda, a pílula anticoncepcional, a fúria
da direita, o imperialismo ianque, o desmatamento da Amazônia, Fidel
Castro, os gurus, o muro de Berlim, a maconha, os mísseis, o aparelho de
TV, o bom selvagem, a viagem à Lua, a descoberta dos outros, o teatro
experimental, a implosão da família.
Naquele miolo do tempo comecei a escrever -à mão, é claro, texto
artesanal sobre papel, a escrita como um prolongamento físico da alma,
de modo a não me deixar contaminar pelas máquinas que alienam a vida
autêntica- eu acreditava piamente nisso.
Aliás, eis um traço da minha
geração, naquele momento: acreditar era um verbo intransitivo.
Acreditava-se.
Nas décadas seguintes, enquanto o Brasil era arrastado para trás,
continuei escrevendo à mão, ainda que com o olho espichado para o
requinte da máquina de escrever, enquanto tentava comprar um telefone.
Em seguida, desiludido com as utopias tribais, pesquisei as
possibilidades do tal do computador, via contrabando, enquanto nossos
governos todos faziam o diabo para impedir que brasileiras e brasileiros
fôssemos corrompidos pelo horror da informática e pelo controle mundial
do Windows.
De repente, a revolução digital explodiu. A paquidérmica máquina movida a
disquetes se transformou numa onipresença opressiva. A primeira coisa
que vem à cabeça é o óbvio: goste-se ou não, trata-se de uma revolução
inexorável e irreversível, embora com certeza surjam no futuro (talvez
já existam) seitas neoanalógicas pregando a morte ao wi-fi, assim como
já existe a dieta paleolítica —mas são só as clássicas exceções de
referência.
Não é o meu caso: para compensar o atraso, tornei-me um viciado em
traquitanas digitais, tomado de um sentimento literariamente otimista: o
acesso universal e instantâneo à informação e aos livros que a internet
permite representava a realização de uma pura utopia.
Mas, em pouco tempo, comecei a perceber que havia alguma coisa errada na
minha equação mecânica: aparentemente, todos leem o tempo todo, mas
nada além de manchetes, pedaços de frases e caixas de comentários.
Além disso, a era da televisão, que dos anos 1970 aos 1990 civilizava um
país iletrado apenas pela oralidade, agora cedia lugar à era da
internet e jogava o Brasil inteiro no mundo da escrita. Num estalo,
milhões de pessoas que jamais leram ou escreveram nada estavam lendo ou
escrevendo alguma coisa em milhões de telinhas e teclados.
Um potencial
civilizatório gigantesco, o triunfo final da palavra escrita, um salto
maravilhoso na educação do país, imaginava eu.
O problema é que a internet não é apenas um meio, a máquina fantástica
de uma gravura iluminista, ou o belo dragão chinês de alguma biblioteca
universal, como sonhava este escritor do século 19. Ela até pode ser
estes objetos hipnóticos —são suas iscas.
Mas não produz nada: é apenas (apenas?) um ambiente inescapável de
sentidos e relações que vem desestruturando todos os aspectos
consolidados da vida pré-internet com uma rapidez e uma simultaneidade
assustadoras. Nesse sentido, somos cobaias mutantes de um momento brutal
de transformação tecnológica.
Mas continuo otimista: passado este terremoto, os gremlins que hoje se
estraçalham aos urros na quarta dimensão voltarão à terra firme para
descobrir as delícias do silêncio visual, da mudez tranquila e da
leitura prolongada.
F. de São Paulo